Ética do Cuidado

Um caminho a percorrer!

No seu livro Promover a Vida, Marie-Françoise Collière (1930-2005) afirma que “…cuidar, tomar conta, é um ato de vida que tem primeiro, e antes de tudo, como fim, permitir à vida continuar, desenvolver-se e assim lutar contra a morte …” (COLLIÈRE, 1989: 27), uma verdade tão antiga como o tempo, quando «cuidar» era um princípio de «responsabilidade individual», sem qualquer enquadramento profissional, sem «favores» familiares ou de terceiros, mas intrínseco a qualquer pessoa que ajudava outra a garantir o que lhe era necessário para continuar a sua vida, uma quase obrigação moral, havendo por isso na «atitude» de cuidar uma marca de «individualismo», entendido este enquanto autonomia e princípio ético e de ação, de desvelo, de preocupação, de atenção e inquietação com o outro, de certa forma o resultado de uma ligação afetiva com a pessoa que é cuidada.

Nel Noddings, citado por Zoboli (2003: 26), defende que “… os seres humanos querem cuidar e ser cuidados e que, portanto, há um «cuidado natural» acessível a toda humanidade”, enquanto Gisela Flores, et al (2011: 534) considera o “… cuidado intergeracional como aquele em que todos cuidam e são cuidados, conforme suas singularidades e diversidades…”.

O «cuidado» é em si um conceito polissémico, tal como se depreende da filologia da própria palavra, quer para quem a entende derivada do latim “cūra” (cura, cuidado, diligência), quer de “cogitare/ cogitatus” (cogitar, cautela, atenção).

Assim sendo, a «ética do cuidado» poderá ser encarada como a afirmação da capacidade do ser humano para dar apoio ao seu semelhante, que de acordo com o «Modelo Principialista» é assegurada pelos princípios de «autonomia, beneficência, não maleficência e justiça» propostos por Tom Beauchamp e James Childress nos anos 70, que apesar de úteis parecem insuficientes tendo em conta a diversidade de modelos de interpretação existentes, sendo por isso igualmente importante chamar à colação alguns dos princípios da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (cooperação, igualdade, privacidade, solidariedade, UNESCO 2005), bem como os Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas (assistência, dignidade, independência, ONU 1991), havendo também outros princípios que parecem adequados quando se fala em «cuidado no envelhecimento» (cultura, dádiva, respeito, responsabilidade social).

Nota: Maria do Céu Patrão Neves, apresenta uma diversidade de modelos sustentados na Bioética, mais individualistas ou mais coletivistas: Modelo Principalista (Tom Beanchamp e James ChIldress – Principles of biomedical ethics); Modelo “Libertário” (Tristam Engelhardt – The foundations of bioethics); Modelo da “Virtude” (Edmund Pellegrino e David Thomasma – For the patient’s good); Modelo Casuístico (Albert Jonsen e Stephen Toulmin – The abuse of casuistry); Modelo do Cuidado (Carol Gilligan – In a different voice); Modelo Contemporâneo do Direito Natural (John Finnis – Natural law and natural rights); Modelo Contratualista (Robert Veatch – A theory of medical ethics), in NEVES, Maria do Céu Patrão (1996). «A Fundamentação Antropológica da Bioética». Revista Bioética V.4, n. 1, pp. 7-16.

No que concerne ao Modelo Principialista, Maria do Céu Patrão Neves considera no seu artigo A Fundamentação Antropológica da Bioética que este não é uma proposta de ética, mas antes uma moral, porque estabelece normas de conduta, estando na base das diferenças existentes entre a perspetiva anglo-americana e a perspetiva europeia, a primeira “mais individualista …, em vista do facto de privilegiar a autonomia da pessoa singular” (NEVES: 1996: 9). Ideia semelhante é partilhada por Volnei Garrafa, um dos maiores bioeticistas brasileiros, muito crítico do Principialismo.

O que se depreende da análise de diferentes perspetivas é que tal como não há uma ideia única de «cuidado», também não há uma «ética única do cuidado», pelo que no quadro abaixo se apresenta uma visão de «ética do cuidado no envelhecimento» norteada por um conjunto mais lato de princípios, em que obviamente se enquadram os propostos no Modelo Principialista, estabelecendo-se uma relação entre os seus pressupostos e a sua importância para o cuidado.

Ética do Cuidado no Envelhecimento – Contributos de Diferentes Princípios

PressupostosImportância para a Ética do Cuidado no Envelhecimento
Princípio da Autonomia
Capacidade da pessoa humana, da pessoa mais velha, decidir/ optar em liberdade, sem qualquer tipo de coação, o que é “bom”, o que é o “seu bem-estar”, de acordo com a sua cultura, valores, expectativas, necessidades, prioridades e crenças próprias, responsabilizando-se pelos seus atosEstabelece o respeito pela liberdade do outro e das decisões do indivíduo e legitima a obrigatoriedade do consentimento livre e esclarecido e da competência enquanto capacidade para ação.
É posta em causa quando se deixa de respeitar as convicções pessoais da pessoa mais velha por já não estar «mentalmente competente».
Ao entroncar na competência para “expressar o consentimento” e por haver casos em que a pessoa mais velha pode já não ser competente para emitir um consentimento informado ou uma recusa, válidos, considera-se importante assegurar a competência enquanto a pessoa está em pleno uso das suas capacidades, recorrendo para o efeito à Declaração Antecipada de Vontade – DAV/ Testamento Vital, renovado a cada 5 anos e com um procurador nomeado para a fazer cumprir, uma opção ainda residual em Portugal.

Nota: O RENTEV, Registo Nacional de Testamento Vital, tem atualmente 85 balcões, 75 no Continente, 9 na RAA e 1 na RAM. Apesar desta disseminação, da Lei ser de 2012 (Lei n.º 25/2012. DR n.º 136, Série I de 2012-07-16) e da Regulamentação datar de 2014 (Portaria n.º 96/2014. DR n.º 85, Série I de 2014-05-05; Portaria n.º 104/2014. DR n.º 93, Série I de 2014-05-15), não houve até 2025 uma adesão significativa (em 21 de janeiro de 2025 encontravam-se ativos apenas 42 mil testamentos vitais, mais de 14 mil outorgados por homens e mais de 27 mil por mulheres).
Princípio da Beneficência
Dar maior bem-estar à pessoaOs profissionais de saúde e familiares devem agir em favor da pessoa mais velha impedindo que ocorram danos, sanando estes, se existirem, e promovendo o bem-estar. Há o risco de encobrir um comportamento paternalista em relação à pessoa mais velha, aumentando a sua fragilidade em vez de a ajudar.
Princípio da Não Maleficência
Não causar prejuízosOs profissionais de saúde e familiares têm o dever de não causar dano ao paciente ou não insistir em tratamento ineficaz. Os maus-tratos a pessoas mais velhas, quer por agressão quer por abandono, é uma clara violação deste princípio.
Princípio da Justiça
Contrabalançar os diferentes e, muitas vezes, conflituosos interesses que emergemProporcionar um tratamento igual entre as pessoas, justo e apropriado.
Torna-se por vezes ambíguo por envolver múltiplas relações – pessoa mais velha, familiares, profissionais de saúde, leis, etc. sendo difícil normalizar procedimentos do tipo “a circunstâncias semelhantes aplicam-se ações semelhantes”.
Princípio da Assistência
Beneficiar dos cuidados e da proteção da família e da comunidade em conformidade com o sistema de valores culturais de cada sociedadePermite à pessoa mais velha o acesso a cuidados de saúde que o ajudem a manter ou a readquirir um nível ótimo de bem-estar físico, mental e emocional e que previnam ou atrasem o surgimento de doenças.
Tem de garantir o pleno respeito pela dignidade da pessoa mais velha, pelas suas convicções, necessidades e privacidade, bem como o direito de tomar decisões acerca do seu «cuidado» e da sua qualidade de vida.
Princípio da Dignidade
Valor espiritual e moral que se manifesta na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que visa o respeito dos outrosA pessoa mais velha deve ter a possibilidade de viver com dignidade e segurança, sem ser explorada ou maltratada física ou mentalmente.
A pessoa mais velha deve ser tratada de forma justa e ser cuidada independentemente da sua contribuição económica.
Princípio da Cooperação
Envolver todos os atores disponíveis no processo de «cuidado»Permite assegurar alianças estratégicas entre atores para conjugar vantagens.
Dever-se-á definir os modelos de cooperação mais adequados, tendo sempre como objetivo o interesse da pessoa mais velha.
Princípio da Cultura
Ter em atenção as múltiplas dimensões que compõem o modo de viver das pessoas mais velhas, envolvendo as suas crenças, valores e conhecimentosPossibilita a aproximação do profissional à pessoa mais velha, facilitando a interação e permitindo compreender e apreender o seu modo de viver, bem como dos seus familiares e/ou indivíduos envolvidos no processo.
Facilita envolvimentos sólidos entre profissional e pessoa mais velha, porque as ações são planeadas em conjunto e sustentadas nas experiências da pessoa mais velha.

Nota: A Teoria da Diversidade e Universalidade do Cuidado Transcultural, desenvolvida pela professora enfermeira Madeleine Leininger (1925-2012), está suportada neste princípio.
Princípio da Dádiva
O cuidado surge como doação intergeracional, que tem na reciprocidade uma prática da vida social, assente na tríade: dar, receber e retribuirIndependentemente do cuidador, tem subjacente os atributos de escutar, conversar, proteger, solidariedade, troca e afeto, indispensáveis para minimizar situações de vulnerabilidade e dar confiança à pessoa mais velha.
Justifica a reciprocidade e promove a resiliência enquanto capacidade para responder de forma positiva às necessidades diárias, independentemente das complicações que se enfrentam.  

Nota: Um suporte da Teoria da Dádiva de Marcell Mauss (1872-1950).
Princípio da Igualdade
Fundamental em termos de dignidade e de direitos, deve ser respeitada de modo que todos sejam tratados de forma justa e equitativaIndissociável do direito de cidadania.
Assegura, na sua versão mais robusta, a equidade em termos da justiça de processos e consequente ausência de discriminação na prestação da assistência/ cuidado.
Princípio da Independência
Acesso aos espaços de preferência pessoalTer a possibilidade de residir no seu domicílio tanto tempo quanto possível.
Princípio da Privacidade
Respeitar a privacidade da pessoa mais velhaPermite à pessoa mais velha assegurar-se da confidencialidade das suas informações.
Princípio do Respeito
Pelos Direitos Fundamentais do IdosoDeve significar uma prática social, quer no âmbito das instituições quer da família.
Princípio da Responsabilidade Social
Todas as entidades que prestam cuidados, públicas e privadas, têm o dever e a obrigação de tratar com dignidade a pessoa mais velha, prestar-lhe serviços de qualidade e contribuir para a sua inclusão social.Ter em conta que a Responsabilidade Social é uma atitude voluntária e proativa que obriga as entidades a assumirem um compromisso estratégico e obrigações de carácter ético que promovam benefícios para a pessoa mais velha, tais como melhores soluções de saúde e qualidade de vida, mais bem-estar e menos stress, respeito pelos direitos pessoais, ambiente social mais agradável.
Ter em conta a forma como os atores públicos e privados, mas também os familiares, estão a integrar no seu quotidiano e na sua interação com outras partes interessadas (stakeholders) as preocupações com as pessoas mais velhas.
Princípio da Solidariedade
Responsabilidade partilhada no cumprimento de obrigações e/ ou envolvendo deveres do Estado em ações de socorro.Nas esferas familiares identifica a ligação com o fortalecimento dos laços.
É um dever civil de cuidado ao outro, um dever ético de relações humanas.

Fonte: Elaboração própria.

Bibliografia

– BEAUCHAMP, TL, CHILDRESS, JF. (1978). The Principles of biomedical ethics. 1ed. New York: Oxford.

– COLLIÈRE, Marie-Françoise (1989). Promover a vida. Da prática das mulheres de virtude aos cuidados de enfermagem. Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, Lisboa.

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– NEVES, Maria do Céu Patrão (1996). «A Fundamentação Antropológica da Bioética». Revista Bioética V.4, n. 1, pp. 7-16

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– SANTIN, Janaina Rigo; BETTINELLI, Luiz Antonio (2011). «A Bioética e o Cuidado no Envelhecimento Humano: Um Olhar a Partir do Princípio da Dignidade Humana e dos Direitos Fundamentais». Revista do Ministério Público do RS, n. 69, Porto Alegre, maio 2011 – ago. 2011

– VEIGAJÚNIOR, Celso Leal (2016). A (RE)CONSTRUÇÃO DO DIREITO DA PESSOA IDOSA: a Ética do Cuidado e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Tese submetida ao Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí –UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Ciência Jurídica, Universidade do Vale do Itajaí –UNIVALI, Itajaí, Brasil.

– ONU (1991). Princípios das Nações Unidas para as Pessoas Idosas. Adotados pela resolução 46/91 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 16 de dezembro de 1991. Ministério Público de Portugal, Procuradoria-geral da República, Gabinete de Documentação e Direito Comparado.

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