Envelhecimento social e idadismo: uma dupla que impacta a sociedade atual
Apesar de ter havido nas últimas décadas um incentivo económico e político à aposentação/reforma, agora em regressão, tendo passado a coexistir a «aposentação obrigatória com a voluntária»[1], a verdade é que em termos sociais a reforma continua a ser vista como uma «porta de entrada para a velhice», como se depreende do título idadista Guia Prático da Pensão de Velhice[2] da autoria da Segurança Social[3].
Efetivamente, a designada reforma ancora todo um conjunto de problemas, normalmente referenciados como perda do papel produtivo, diminuição da participação social ativa, alterações ao nível dos papéis sociais já desempenhados (pode determinar crise de identidade com perda da autoestima; implica mudanças e adequações a novos papéis), diminuição de rendimentos económicos com reflexo no potencial de lazer, aumento da quantidade de tempo livre.
Alguns destes fatores, se assumidos como exclusão, podem potenciar o isolamento e a solidão.
Também a representação social da velhice e do envelhecimento por parte do outro pode ser um problema para a pessoa mais velha, gerando exclusão social (muitas vezes assente no conflito intergeracional) e considerações desqualificadoras: “só falam em doenças”, “não têm objetivos”, “não evoluem com a sociedade”, ficam com as “ideias estagnadas”, “só convivem com pessoas iguais”, ”não há paciência para aturar os velhos”, “brigada do reumático”[4].
Cf “Glossário Anti-idadismo. As Pessoas Mais Velhas Não São Descartáveis“. Portal Animar
Por isso e porque o envelhecimento social implica transformações ao nível dos papéis sociais adquiridos, era importante desenvolver uma «pedagogia do envelhecimento» que facilitasse uma preparação atempada, para que quando chegasse a altura qualquer pessoa assumisse sem receios um novo estilo de vida adaptado à minimização das perdas e ao ajustamento/ adaptação às novas realidades ou, não querendo deixar de ser ativo, compreendesse as adequações a fazer.
Gosto de alertar para a necessidade de preparar um Plano B!
No vídeo “O que é Velhice”, a Professora da PUC-SP, Maria Garcia, recomenda também um Plano B.
https://www.youtube.com/watch?v=PNcIjzkETcc
A sensibilização para um «envelhecimento colaborativo», sustentado em laços de amizade, poderá ser uma estratégia para que as pessoas mais velhas, enquanto ainda são mais novas, possam programar o seu próprio processo de envelhecimento, em termos de defesa de direitos e de definição de estratégias nos domínios do lazer, da saúde e da oferta local que lhes é dirigida, em que a perda de poder é muito evidente.
Impactos da perda de papéis sociais com a idade
Entre os «papeis sociais perdidos» e que podem ter elevado impacto no processo de envelhecimento está o papel produtivo que advém com a reforma, com exceção das situações referidas na nota final[5]. Também a rede social do universo profissional da pessoa mais velha pode ficar muito comprometida com o abrandamento do relacionamento ou com o seu desaparecimento.
Relativamente aos «papéis sociais desativados» refere-se o papel conjugal quando há uma situação de viuvez ou de divórcio.
No que toca aos «papéis sociais preservados» salienta-se o papel parental que, no entanto, tem modificações significativas resultantes da alteração de função de “pai educador” que por vezes pode passar a ser “pai dependente” (por razões de saúde, por questões económicas). Os papéis de irmãos e irmãs também sofrem alterações ao longo dos anos, renovando-se na velhice por maior disponibilidade. O papel de vizinho é igualmente preservado desde que haja manutenção da residência.
Teorias explicativas do envelhecimento social: uma análise crítica
Teoria das Trocas: a lógica do dar e receber
A Teoria das Trocas, desenhada com base nos estudos dos sociólogos americanos George Caspar HOMANS (1910 – 1989) e Peter BLAU (1918 – 2002), está relacionada com os sentimentos de bem-estar na velhice, com o dar e o receber, assegurados na interação entre «indivíduos – indivíduos» e «indivíduos – instituições».
Para esta teoria, que estabelece semelhanças entre as interações sociais e as transações económicas, a continuação e avaliação positiva que é feita das trocas sociais está relacionada com o «lucro» que os sujeitos reconhecem à interação (avaliação positiva do dar e receber), uma visão utilitarista e de reciprocidade mútua sustentada numa perspetiva de custo-benefício, que olha para os problemas do envelhecimento como o resultado da diminuição de recursos em termos de poder (dinheiro, aceitação social, estima ou respeito, aprovação social), com ganhos para os/as mais poderosos/as participantes da relação (pessoas de meia idade e jovens).
Sujeita a diferentes críticas, com destaque para a ênfase na visão económica e racional, que ignora que existem motivações não racionais (afeição, altruísmo, amor), as suas proposições básicas estão suportadas nas seguintes normas: “i) Norma da reciprocidade: as pessoas devem ajudar aquelas que as ajudam; ii) Norma da justiça distributiva: as pessoas devem tentar atingir um equilíbrio ou uma proporcionalidade nas trocas sociais; iii) Norma de beneficência: os idosos devem receber o que necessitam, independentemente do seu valor social atual; as trocas sociais entre o idoso e a sociedade refletem a dependência económica e social do idoso” (NERI, 2015)[6].
Teoria da Equidade: como o equilíbrio influencia o bem-estar
A Teoria da Equidade deriva da Teoria das Trocas e foi elaborada por John Stacy ADAMS (1925 – 1984) em 1963[7], psicólogo americano nascido na Bélgica, tendo o foco num princípio de equilíbrio e de reciprocidade nas trocas entre pessoas ou instituições, que reforça a autovalorizarão do sujeito e contribui para o seu bem-estar.
Independentemente de a troca ser de ordem afetiva, material ou na saúde, deve ser o mais equitativa possível, porque a falta de equidade pode gerar diferentes «sentimentos de desigualdade»: i) sentimentos de injustiça e de ressentimento naquele que dá mais do que recebe; ii) sentimentos de vergonha e culpa na pessoa mais velha que recebe mais do que aquilo que dá.
Teoria da Integração Social: o poder de pertencer
No que concerne à Teoria da Integração Social preconizada por David Émile DURKHEIM (1858 – 1917), sociólogo francês considerado o “pai da Sociologia Moderna”, estão implícitos os efeitos estruturais no bem-estar psicológico das pessoas, defendendo-se que a integração social “promove um sentido de significado e propósito para a vida”[8], um compromisso que as pessoas têm ao nível social, que conduz ao suporte social e que pode ser medido pela “frequência, intensidade e qualidade dos contactos sociais”, o que se traduz em bem-estar, evidenciando o nível do sentimento de pertença à sociedade, que por sua vez contribui para uma melhor qualidade do envelhecimento e da saúde (há contactos que pela sua negatividade a pode prejudicar), podendo mesmo proteger as pessoas de comportamentos desviantes.
Teoria da Atividade: manter-se ativo é a chave?
A Teoria da Atividade proposta por Robert James Havighurst (1900 – 1991), um químico e físico especialista em desenvolvimento humano, propõe o conceito de «tarefas desenvolvimentais» ligadas à idade, na perspetiva life span: biológicas – maturidade fisiológica e genética; psicológicas – aspirações e valores; culturais – expectativas da sociedade relacionadas com a cultura específica a que o indivíduo pertence.
Este modelo biopsicossocial sugere que somos aprendizes ativos que continuamente interagimos com um ambiente social igualmente ativo e que o sucesso obtido nas tarefas realizadas com êxito dá felicidade, autoestima e vontade de viver e sucesso nas tarefas seguintes, enquanto o insucesso gera infelicidade e reprovação social.
A Teoria da Atividade está sustentada em duas importantes hipóteses:
i) As pessoas mais velhas e ativas estão mais satisfeitas com a vida e ajustadas do que as pessoas mais passivas;
ii) As pessoas mais velhas podem substituir papéis perdidos por novos, de forma a manterem o seu lugar na sociedade.
Esta teoria tem implícito o conceito «envelhecimento bem-sucedido»[9], que atende às “condições de vida individual e social das pessoas mais velhas”[10], a que se juntou em 1968 o conceito de personalidade, por via das conclusões permitidas pelo Kansas City Study (Universidade de Chicago).
Entre as críticas que se fazem à Teoria da Atividade estão: i) uso indiscriminado do conceito de atividade; ii) grau de adesão a atividades por parte de reformados e pessoas mais velhas; iii) não ser tido em conta um estilo de vida menos ativo e as condições de saúde; iv) induzir a ideia de que o bom envelhecimento implica envolvimento constante em atividades.
Teoria da Seletividade Socioemocional: foco nas relações significativas
A Teoria da Seletividade Socioemocional, formulada pela psicóloga americana Laura Carstensen que se preocupou com a importância da autorregulação emocional ao longo do ciclo vital e, em particular, com a preservação da mesma ao longo do processo de envelhecimento, tem por objetivos explicar o declínio que se verifica nas interações sociais, bem como as mudanças no comportamento emocional das pessoas mais velhas, que com o envelhecimento passam a ter menor capacidade emocional, em termos de intensidade e de descodificação das emoções.
Assenta nos seguintes pressupostos:
- A interação social é básica para a sobrevivência;
- Os seres humanos são ativos por natureza e envolvem-se em comportamentos orientados por objetivos;
- O tempo passa a ser visto como algo que está em expansão ou limitado e que influencia a avaliação e seleção de objetivos.
Esta teoria contradiz a Teoria da Atividade (restrição de interações sociais devido às normas sociais), a Teoria do Afastamento (afastamento recíproco entre pessoas mais velhas e sociedade, adaptativo e que prepara os pessoas mais velhas para a morte) e a Teoria das Trocas (as perdas influenciam na diminuição do investimento da pessoa mais velha nas relações interpessoais, enfraquecendo os laços sociais), não aceitando que as pessoas reagem ao contexto social de forma simplista, mas que constroem de “forma ativa o seu mundo social”, organizando a sua vida em função de uma nova redistribuição de recursos económicos que os leva a selecionar metas, parceiros e formas de interação, para otimizarem recursos.
Teoria da Dependência Aprendida: como os contextos moldam a autonomia
A Teoria da Dependência Aprendida foi formulada pela psicóloga e gerontologista alemã Margret Maria Baltes (1939-1999) e está sustentada nos seguintes pressupostos:
- As pessoas mais velhas necessitam de ser capazes de modificar a sua vida para que a adaptação seja feita com sucesso sempre que necessário;
- A dependência comportamental é aprendida porque os comportamentos envolvidos têm forte probabilidade de serem reforçados socialmente, conforme as regras que vigoram no microambiente social;
- A aceitabilidade social da dependência varia em função do valor diferencial que os grupos sociais e as pessoas lhe atribuem, em diferentes fases e circunstâncias da vida e de desenvolvimento;
- A dinâmica «dependência-autonomia» altera-se ao longo do desenvolvimento, sob a influência de variáveis maturacionais, da senescência, de doenças e incapacidades, de condições do macroambiente social, de valores e expectativas individuais e culturais e de variáveis microssociais;
- A acentuada dependência física, cognitiva, social e emocional não é evento natural e nem esperado para a maioria das pessoas mais velhas como consequência do envelhecimento;
- A dependência comportamental das pessoas mais velhas pode ser intensificada em ambientes onde a escassez de pessoas cuidadoras, a escassez de preparação técnica e o imperativo de cumprimento de rotinas e esquemas de tempo se sobrepõem à necessidade de valorizar as competências e a independência das pessoas mais velhas.
Mais recentemente tem-se desenvolvido o “paradigma do envelhecimento ativo”, sustentado nos seguintes pressupostos que dão corpo a diferentes abordagens concetuais:
- Prolongamento da condição de ativo, desde que o exercício da profissão seja compatível com o processo de envelhecimento, havendo desvinculação gradual do mundo do trabalho (conceito da OCDE, 1998);
- Otimização da qualidade de vida e das condições de saúde, de participação social e de segurança e a manutenção da autonomia e da independência (conceito da OMS, 2002);
- Envelhecimento saudável sustentado em práticas que envolvem a educação e a formação ao longo da vida, o prolongamento da vida ativa, o adiamento da entrada na reforma e a prática de atividades durante a reforma que reforcem capacidades e saúde (conceito da CE, 2002)[11].
E, afinal, o que propõe o paradigma do envelhecimento ativo?
Para Cabral & Ferreira (2014: 14) “a epítome do envelhecimento ativo são os «estilos de vida saudáveis» e os «bons hábitos de saúde»”, considerando que apesar da bondade do paradigma este conduz à reprodução de desigualdades perante a saúde e a doença, havendo ainda o perigo de contribuir para o adiamento da idade da reforma, para assegurar o prolongamento das carreiras contributivas e a concomitante sustentabilidade financeira da segurança social, misturando-se por isso vida saudável e saúde com economia.
É importante que se invista no envelhecimento ativo e na minha perspetiva, já defendida em artigos anteriores, no antienvelhecimento, mas também que se saiba claramente o que se pretende fazer após a reforma (ter um Plano B?) e que, simultaneamente, se esteja alerta e atento para os aproveitamentos economicistas e políticos que possam surgir. Na prática, numa perspetiva empoderadora, que as pessoas mais velhas tenham consciência dos seus direitos e do que coletivamente podem fazer para se defenderem, exigirem e reivindicarem!
Bibliografia
[1] A «aposentação obrigatória» resulta diretamente da lei – ex.: limite de idade – ou de iniciativa – ex.: incapacidade – ou decisão – ex.: aposentação compulsiva – da entidade em que o subscritor exerce funções) e a «aposentação voluntária» é arequerida pelo subscritor ou ex-subscritor (https://www.cga.pt/glossario.asp).
A idade legal para o acesso à Pensão de Velhice situa-se em 2025 nos 66 anos e 7 meses, havendo situações em que é possível aceder à reforma mais cedo (reforma antecipada).
Segundo o Guia Prático da Pensão de Velhice disponibilizado pela Segurança Social, para ter acesso à reforma antecipada é necessário cumprir, pelo menos, um dos seguintes requisitos: i) Ter 60 anos ou mais de idade e 40 anos ou mais de descontos (antecipação pelo novo regime de flexibilização ou pelo antigo regime de flexibilização em vigor a 31 de dezembro de 2018); ii) Ter 60 anos ou mais de idade e uma carreira de 46 anos ou mais de descontos (antecipação pelo regime das carreiras muito longas); iii) Estar numa situação de desemprego involuntário de longa duração; iv) Ter uma atividade profissional de natureza penosa ou desgastante; v) Estar abrangido por medidas de proteção específicas – https://www.comparaja.pt/blog/reforma-antecipada;
[2] https://www.seg-social.pt/documents/10152/14521673/7001_pensao_velhice.pdf/003416f8-5c4e-44e6-a502-844a423a9396
[3] Por que não Guia Prático da Aposentação?
[4] SILVA, Maria Ester Vaz (2006). “Se fosse tudo bem, a velhice era boa de enfrentar!” Racionalidades leigas sobre envelhecimento e velhice – um estudo no Norte de Portugal”. Tese de Doutoramento em Sociologia, Universidade Aberta, Lisboa, pp. 187-188.
[5] A perda do papel produtivo associado à reforma está muitas vezes inquinada de uma “leitura social” reducionista e incomodativa, até porque há pessoas que optam pela «reforma antecipada» para fecharem um ciclo produtivo e iniciarem outro (p. ex. negócio próprio), o mesmo podendo suceder com as pessoas que se reformam por idade. O paralelismo «reforma – inutilidade – falta de produção» é uma forma preconceituosa de análise, claramente idadista e sustentada num «paradigma economicista» e numa desqualificação social das pessoas reformadas, mesmo assim enviesada pela acomodação a determinados estratos socioprofissionais, menos escolarizados e menos especializados profissionalmente. Mesmo a visão de que a pessoa reformada restringe a rede social à família, ignora a possibilidade de manter contactos periódicos com membros da antiga rede profissional (p. ex. almoços periódicos, encontros, festas, debates) e construir uma outra rede de contactos (p. ex. contactos por via de Ginásios, Sindicatos, Universidades Seniores, novas empresas em que entenda trabalhar, associações de voluntariado, etc.).
[6] NERI, Anita Liberalesso (Org), 2015. Desenvolvimento e Envelhecimento. Perspectivas biológicas, psicológicas e sociológicas. Papirus Editora, Campinas, Brasil.
[7] ADAMS, J. Stacy (1965). Inequity in Social Exchange. New York academic press. Acedido em: http://web.mit.edu/curhan/www/docs/Articles/15341_Readings/Justice/InequityInSocialExchange_Adams.pdf
[8] RAMOS, Marília P. (2002). «Apoio social e saúde entre idosos». Revista Sociologias, ano 4, nº 7, jan/jun 2002, Porto Alegre, p. 156-175.
[9] Desenvolvido na década de 60 por Havighurst está suportado na perspetiva de que para o envelhecimento ser bem-sucedido implicaria a manutenção das atividades iniciadas na meia-idade, pelo maior tempo possível, sendo substituídas sempre que necessário, abrindo por isso a porta ao «paradigma do envelhecimento ativo» de que muito se fala hoje em dia e que também releva a imagem social da velhice na sociedade, a satisfação das pessoas mais velhas com as suas atividades e o contentamento com as suas vidas
[10] DOLL, Johannes; GOMES, Ângela; HOLLERWEGER, Leonéia; PECOITS, Rodrigo Monteiro; ALMEIDA, Sionar Tamanini (2007). «Atividade, Desengajamento, Modernização: teorias sociológicas clássicas sobre o envelhecimento». Revista Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento, v. 12, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Envelhecimento – NEIE, Porto Alegre, Brasil, p. 7-33.
[11] CABRAL, Manuel Villaverde; FERREIRA, Pedro Moura (2014). Envelhecimento Activo em Portugal. Trabalho, reforma, lazer e redes sociais. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, p. 13.